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Percorri o jardim do meu olhar, até onde alcançava a minha vista
e fui olhando tudo o que lá via. Recordei todas as flores,
chorando ao pé de uma lagoa sombreada e mista
de dores e amores que ninguém padeceria.
Percorri o jardim reconstruído sobre as ruínas de um amor ausente
e percebi as pragas e maleitas
que haviam atacado e destruído tantas flores, em todos os canteiros.
Até as pedras choravam, de doentes.
Percorri o jardim e lá me deixei estar, olhando e apreciando
os meus amores, meus canteiros já novamente cuidados.
Plantei novo jardim no meu olhar, semeei novas espécies, novas flores
e deixei os meus males lá bem fundo, enterrados…
Felipa Monteverde
Sentei-me na esplanada do café.
Mandei vir um café. Paguei-o, entregando
uma moeda de um euro que retirei do porta-moedas
e da qual recebi troco. E afinal era uma moeda falsa!
O empregado veio perguntar-me se sabia onde a tinha recebido
se sabia quem ma tinha dado, porque era falsa.
Já ouvi de falar de notas falsas, agora moedas!
Era uma moeda velha e amachucada
cá para mim foi por isso que ele não a quis.
Disse que até no peso se notava, que a falsa era mais leve,
que o material não era o mesmo e (para que eu não
me pusesse com ideias) que nem a máquina dos cigarros a aceitaria.
Não acreditei, claro, ele não queria era ficar com uma moeda velha.
É que, se aquela moeda era falsa, já tinha enganado muita gente
pois tinha nitidamente anos de circulação.
Mas dei-lhe outra. E dali a uns minutos ele veio
trazer-me o troco. Troco?! Ele já me o havia dado…
Desfiz o engano (mas hesitei…)
E ele deve ter ficado com cara de parvo
mas pelo menos ficou a saber que eu não pretendia enganá-lo.
A crise dos outros não me incomoda
jamais alguém se preocupou com a minha.
Vivo em crise desde que nasci, poupança
foi a primeira palavra que aprendi.
Tenho desejos, como toda a gente tem, de
ter coisas boas e bonitas – mas a crise que
me acompanha desde o nascimento jamais
me permitirá tê-las para além do sonho…
Passeios, viagens que farei, vestidos e joias
que um dia comprarei…
Entretanto esse sonho vai mirrando
cada dia mais… pouco a pouco vai deixando
de ter espaço para eu lá habitar… E de novo
acordo para a crise, real mistura de emoções que
todos sentem, entre altos desejos e vontades
e a simples satisfação de meras necessidades…
A crise dos outros não me incomoda, se
a vivem num vestido mais bonito do que o meu.
Felipa Monteverde
Engoliu à pressa o café, a chávena escaldando os dedos. Queimou a língua mas não se importou, lá fora a primavera despertava e ele queria assistir ao nascimento da primeira flor. Ver o sol, depois de semanas ininterruptas de chuva, era como renascer. Sentia as forças aumentarem, a alegria a instalar-se.
Bebeu à pressa o seu café e ficou aguardando, a menina Eugénia viria logo para lhe empurrar a cadeira até ao jardim. Deixá-lo-ia lá, uma manta sobre os joelhos, até que a chamasse. Mas hoje não chamaria, as saudades que sentia do sol não se matariam com uma hora ou duas de exposição. Precisava de o sentir na pele, de o deixar abrasá-lo com o seu calor. Viesse a menina Eugénia buscá-lo apenas para o almoço, até lá queria absorver tudo o que pudesse do astro amigo.
Ficou horas no jardim. Com o olhar de quem se habituou desde muito cedo a reparar nos mais ínfimos pormenores das coisas, ele via todas as plantinhas que despontavam no jardim, todas as flores cujo botão já assomava. E desenhava.
Nos seus desenhos havia sempre flores, havia sempre uma nova planta ou flor para mostrar ao mundo. Ao mundo ou à menina Eugénia, que era quem dependurava todos esses desenhos nas paredes do seu quarto. E até no corredor, quando todas as paredes do quarto que era o seu mundo não chegavam.
Felipa Monteverde
Se importava ou não, ela saberia responder. Na vida nada lhe tinha sido fácil, desde pequenina. Uma meningite que quase a levava, a orfandade que a acompanhava desde bebé, a aprendizagem difícil na escola, as amizades que não conseguia arranjar, os namoros que nunca teve.
Por isso sabia bem, se as coisas importavam ou não, não lhe viessem agora com conversas ocas e conselhos inúteis. Gostava dele, pronto. Não lhe importava se ele correspondia, se ele se importava com ela, se era certo ou não esse romance. Só queria estar com ele, sem pensar em nada.
Nas noites agitadas em que sonhava com o final, com o dia em que ele deixaria de aparecer, percebia que nada na sua vida valeria a pena, que tudo se desmoronaria como um castelo de cartas mal construído, como um castelo de sonhos em que ela jamais viveria.
Por isso a deixassem em paz, vivendo a sua vida, contemplando esse amor como se fora a relíquia que a tornaria sagrada, que a tornaria mulher. Que fazia com que valessem a pena todos esses anos de poupança, de solidão, de isolamento. Agora estava bem financeiramente, podia perder tempo, tirar fins-de-semana, férias, para estar com ele. Para viver com ele as horas em que a paixão tomava conta dos dois e o tempo parava.
O amor que lhe inundava o coração tomava conta do seu corpo. Vagas intensas de paixão em sonhos que se tornavam realidade, a lascívia que tomava conta das noites em que ele ficava até de manhã. Tudo isso fazia com que valesse a pena.
O resto não importava, não queria saber. Queria apenas que ele a amasse, que apagasse aquele fogo que tomava conta do seu corpo, sempre mais e mais, cada vez mais ansiando que chegasse a noite e ele abrisse a porta do seu quarto, sorrindo.
Se era feliz? Era imensamente feliz. O resto não importava nada.
Felipa Monteverde
Li no jornal:
«Menina de oito anos morre na noite de núpcias».
Mas que mundo cão é este, que permite
que uma menina de oito anos tenha noite de núpcias?!
Maria Antónia acordava todos os dias às sete horas. Não que se levantasse a essa hora, mas gostava de ficar sempre um bocadinho na cama, acordada, antes de se levantar para mais um dia de trabalho.
Por volta das oito horas já tinha tomado o pequeno-almoço, estava pronta para sair e esperava por ele.
Ele era o autocarro, o companheiro das oito, como dizia. Todos os dias da semana, à mesma hora, mais minuto menos minuto, ela apanhava aquele autocarro e lá ia, sem vontade nenhuma, trabalhar.
Ah, como ansiava um dia encontrar um homem rico, ou pelo menos um daqueles que têm brio masculino, ou lá o nome que isso tem, e não querem que a mulher trabalhe... assim já ela não teria de se preocupar em levantar-se da cama, ficaria todo o dia entre os lençóis, bem deitadinha...
O pior seria o dinheiro. Habituada à independência financeira desde muito nova, algum dia seria ela capaz de depender de um homem? Depender para tudo, pedir dinheiro para tudo, até para comprar um simples lenço?
Não sabia, não sabia se seria capaz... queria era dormir, isso sim, até ao meio-dia, todos os dias... o resto ver-se-ia depois.
Mas encontrar um homem desses não é tarefa fácil. Ela bem tenta, mas não é fácil. É que para que ela se submeta a um homem desses, de quem ficaria totalmente dependente, ele tem de ter todas as qualidades, todinhas mesmo, não perdoa nenhuma...
E por isso ainda espera por ele, pelo homem e pelo autocarro, todos os dias. O autocarro nunca falta, o homem tarda em aparecer... mas um dia chegará, ela sabe, em que o encontrará, num sítio qualquer. Se há tantas mulheres com essa sorte, por que não há de ela tê-la também?
Felipa Monteverde
Ouvia-o mas parecia que as palavras dele soavam muito longe, tão longe como a vida que ambos haviam partilhado. Já não parecia o mesmo. Naquele rosto marcado pela idade, onde as rugas iam desenhando traços de solidão, parecia não haver nada do homem que ela conhecera, nada restava do sonho que a havia atraído ao vê-lo pela primeira vez. Longe, tão longe, ficaram as lembranças, perdidas na noite escura do desespero que já sentira e das saudades que ainda guardava no peito e na alma.
Ouvia-o e parecia não ouvir, não entendia nada, as palavras pareciam disfarçadas ou distorcidas, não conseguia perceber sequer qual o assunto de que ele falava. Ou não queria perceber. Nem entender. Preferia ignorar, ignorar sempre, só queria dormir. Dormir toda a noite e todo o dia, todos os dias e todas as noites.
Ele insistia, chamava-a pelo nome, chamava-a com carinho, até. Falava, falava muito. Insistia com ela e ela sem entender nada, de que falava ele? "Não durmas" dizia, quase gritava, mas ela tinha tanto sono...
Olhava para ele sem entender, os olhos queriam fechar-se, queria gritar por socorro, que a deixasse dormir em paz. Mas ele não deixava, e falava, e gritava, e dizia coisas que ela não entendia.
Por que insistia ele tanto em chateá-la? Em não a deixar descansar em paz? Ela só queria dormir, até tinha tomado mais comprimidos do que o habitual, a ver se descansava, há dias que a cabeça não parava de lhe doer, de a incomodar com aquela dor lancinante que parecia roubar-lhe a alma. E ela sem aguentar mais, os analgésicos já sem o efeito pretendido, sem conseguir sequer dormir, há tantos dias a sofrer... E agora era ele que não a deixava dormir, e os comprimidos a fazerem-na adormecer... não aguentava mais, o sono a invadi-la e ela a querer deixar-se ir...
"Deixa-me dormir" disse, e ele "o que te fiz, por que fizeste isto" e ela "isto o quê, deixa-me dormir, não sejas chato"...
E agora ele a pô-la na banheira, que significava isso, estava doido?
"Não durmas", gritava ele, "não me deixes", o parvo, mas onde pensava ele que ela ia, ela só queria dormir, mais nada... e ele a abrir a torneira, o idiota, a molhar-lhe o pijama, era doido...
Felipa Monteverde
Anda pelo facebook uma imagem que diz:
"Amigo não é aquele que te levanta quando cais, mas sim aquele que vai atrás do f. d. p. que te empurrou."
Isto é suposto ter piada... mas eu acho esta definição de amizade a mais verdadeira que já vi. E como nunca ninguém foi atrás de nenhum dos f. d. p. que já me empurraram, fico assim a saber que não tenho amigos.
Felipa Monteverde
Nada sei da sua vida. Nunca antes a havia visto.
É muito velha, isso é o que salta à primeira vista.
Sentou-se a uma mesa, no café onde me encontro
e toma o seu galão e uma torrada. Muito magra
cabelo acinzentado preso atrás, num “toco”.
Deu-me vontade de conversar com ela, perguntar
da sua história de vida. Não é viúva, não veste
de preto (embora isso atualmente não queira dizer nada).
Imagino-a solteira, toda a vida a cuidar dos outros.
Dos irmãos mais novos, dos pais, dos patrões
sem nunca ter tido tempo para si.
É muito velha mas está fina de cabeça,
procurou o jornal e está a ler. Não é tímida
nem arrogante. É uma velha interessante.
Pena que não irei falar com ela, não me atrevo,
mas fiquei a pensar nisso.
Veste blusa estampada com tracejados e bolinhas
preta e branca, casaco bege de malha com bolsos.
Saia aos quadrados, às cores entre o cinzento e o roxo.
Sapatos de pano tipo sabrinas, de cor bege.
Usa óculos. Brincos de ouro.
Traz saco de compras aos quadrados, e um saco
de plástico do Modelo.
Espera pelo autocarro, talvez,
que a levará até às pessoas que dela fazem criada,
que dela abusam mas a quem ela quer bem.
Felipa Monteverde