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Prendia-o o mar, era o mar que o prendia. Prendia-o àquela aldeia tão insignificante, tão pequena. “Se não fosse o mar…”
Talvez tivesse emigrado, procurado outra vida. Mas amava o mar…
- Nos outros países também há mar – diziam-lhe.
Sim, havia mar, António sabia que havia mais mar, não era só este. Até tinha aprendido na escola que havia no mundo mais mar do que terra. E tinha aprendido os nomes dos cinco Oceanos: Atlântico, Indico, Pacífico, Árctico e Antárctico. Isso ele sabia.
Mas o mar não é igual em todo o lado, isso ainda sabia melhor. Um dia visitara a cidade de Corunha, em Espanha. E viu o mar de lá, e agradou-lhe.
Era um mar diferente. Pareceu-lhe mais verde do que azul, e a espuma das ondas era branca como o leite. Agradou-lhe aquele espectáculo de verde e branco. Ficou meia hora a olhar o mar, e só não ficou mais tempo porque o autocarro da excursão não esperava mais. Entrou para o autocarro com os olhos cheios de mar. Ele amava o mar.
Punha-se muitas vezes na varanda de sua casa a olhar o mar. Outras vezes ia vê-lo mais de perto, na praia. António era pescador e apaixonado pelo mar. António via o mar, ouvia o mar, cheirava o mar… António gostava do cheiro do mar; cheiro a sal, a maresia…
E então António lembrou-se de uma coisa, uma coisa muito importante: o mar da Corunha não tinha o mesmo cheiro. Não, não tinha o mesmo cheiro. Assim como não tinha a mesma cor, também não tinha o mesmo cheiro… O mar não era igual em todo o lado.
Por isso, António não saiu da sua terra, não emigrou como os irmãos.
Os irmãos de António moram há anos no Canadá. E vivem bem, têm coisas que ele nunca viu, a não ser nas revistas que folheia no quiosque se a dona estiver distraída, pois quem mexer é obrigado a comprar. Mas se António comprar a revista, não pode comprar o jornal; e ele prefere comprar o jornal, sempre tem coisas mais sérias.
As fotos das revistas atraem-no, mostram coisas que só assim pode ver. Mostram coisas que ele gostava de ter, que gostava de oferecer aos filhos… mas o mar, o seu mar, tem andado zangado; o peixe é sempre pouco.
E depois, o comer é certo, o vestir é certo… as contas têm de se pagar. E António sempre pagou as suas contas, toda a gente sabe que ele é um homem sério. Pobre, sim, mas sério, honesto.
Há dias António recebeu uma carta do irmão mais velho, o primeiro a emigrar para o Canadá (depois foram os outros dois, chamados por ele).
Agora Joaquim escrevia-lhe: que fosse para o Canadá, que lá se vivia bem. E depois, estariam os irmãos perto uns dos outros, os filhos cresceriam juntos e amigos; afinal, eram primos e nem se conheciam. Aliás, nem os tios os conheciam.
Mas António amava o mar…
Conversou com a mulher, conversou muito com a mulher. E a mulher já se via longe da enxada, da sardinha, do tanque de lavar roupa (lá há máquinas para tudo…). Via-se com um vestido igual ao de uma das cunhadas, na fotografia que mandaram no Natal… A mulher de António sonhava, sonhava…
Conversaram, conversaram muito. E António decidiu-se, iriam para o Canadá. Pela mulher, pelos filhos, iria para o Canadá. A mulher merecia que ele lhe desse uma vida melhor. A sua mulher merecia uma vida melhor. Os seus filhos também. Os seus queridos filhos.
Pela mulher, pelos filhos, António deixaria o mar. Dali a duas semanas estariam no Canadá. Iria rever os irmãos, conhecer os sobrinhos (nem sabia ao certo quantos eram). “Daqui a duas semanas estamos no Canadá,” pensava. E o mar?
António não pensava no mar. Se pensasse, não teria coragem para partir.
Venderam a casa. Iriam para o Canadá, viver uma vida melhor. A mulher merecia, os filhos mereciam… Nessa noite, quando saiu para a pesca, António levava a certeza do Canadá. Só mais uns dias de mar, e depois o Canadá. Pela mulher, pelos filhos, para lhes dar uma vida melhor…
Pela manhã o barco de António não apareceu na praia. António não apareceu na praia. E houve gritos, muitos gritos. Gritou a mulher, gritaram os filhos; todas as mulheres da praia gritaram, toda a gente chorou.
Os rudes homens do mar também choraram, mesmo sabendo que era o destino. O destino de António e talvez o deles próprios. Nesse dia houve muito choro na praia.
Dias depois deram à costa algumas tábuas do barco, do barco de António. E houve mais gritos, houve mais choro; desta vez, um choro mais resignado. Mas os gritos da mulher e dos filhos de António eram iguais aos do primeiro dia: fortes, desesperados…
Vieram os irmãos, do Canadá, para o funeral, mas o corpo de António não aparecia. O corpo de António não apareceu, ficou no fundo do mar.
Os irmãos tinham de partir, regressar ao trabalho. O patrão dera-lhes licença de poucos dias, tinham de voltar.
Joaquim falou com a cunhada. Que fosse para o Canadá, os filhos teriam uma vida melhor, ela teria uma vida melhor; que António ficaria contente. Conversaram muito.
E a mulher de António foi para o Canadá. Ela e os filhos, com a ajuda dos cunhados. Arranjaram-lhe casa, trabalho, os filhos na escola…
A mulher de António foi para o Canadá, os filhos de António foram para o Canadá; têm uma vida melhor. Era o desejo de António.
Mas António não deixou o mar. Porque o mar, ciumento, não o deixou partir.
António não deixou o mar. O mar não deixou o António.
Felipa Monteverde