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15
Jun12

O Último feriado

por Felipa Monteverde

Ela ia lavando a loiça, pondo-adepois a escorrer. O almoço fora bom, saboroso; já todos tinham almoçado e regressado ao trabalho.

O trabalho era uma preparação para o Natal que se aproximava: o marido e os filhos preparavam a lenha, serrando e cortando os troncos para depois pôr em achas na lareira. Serravam, cortavam, armazenavam, abrigando a lenha da chuva que se adivinhava para breve, quiçá antes de a tarde acabar.

Os filhos já eram crescidos. Ela olhava-os da janela e recordava outros feriados, e este em particular. Porque este feriado era dela e dos filhos.

Quando eram crianças ela ia com eles ao monte procurar pinhas, bugalhos, ramos secos e outras coisas, para enfeitar a casa no tempo que antecede o Natal.

O pinheiro às vezes também vinha neste dia mas só se encontrassem um já cortado, não tinham coragem de destruir o pinheiral só para terem árvore de Natal. Se não encontrassem um pinheiro já cortado esperavam até ao próximo feriado, no dia 8, e só então, se não o tivessem encontrado, ela e os filhos cortavam um, num sítio que estivesse a precisar de desbaste. Por isso as suas árvores de Natal nunca eram bonitas como as da outra gente…

Acabou de lavar a loiça e foi até à porta; ali ficou, a olhar para o quintal.

Estava triste. O feriado fora-lhe roubado, não só pelo Governo, que determinara ser este o último ano em que seria comemorado, mas também pela vida, que lhe retirara a companhia dos filhos.

Apesar de estarem todos em casa ou no quintal, trabalhando, ela estava só. Cuidara das roupas e do almoço, agora tratava da loiça, mas sozinha. Os filhos trabalhavam com o marido, cuidando da armazenagem da lenha.

Antigamente o marido trabalhava neste feriado, guardavam apenas os religiosos, mas a vida dera-lhes uma folgazinha, já se podem aliviar na poupança e aproveitar outros feriados, embora seja igualmente para trabalhar, mas nas suas coisas. Tratar das galinhas, da lenha, da horta, etc.

Hoje ela está melancólica. Sente que está a perder a atenção dos filhos, que não a querem ao pé deles a tratar da lenha, dizem que só iria atrapalhar, que eles tratam de tudo...

Afasta-se para a cozinha; guarda a loiça no armário, faz um café e senta-se à mesa, a tomá-lo devagar.

Ouve as conversas alegres do marido e dos filhos, ouve as risadas, sente-se só.

“Estou a ficar velha, já não me ligam nenhuma…”

Mas não se resigna, até agradece que não a deixem tratar da lenha, ficaria com as mãos ainda mais estragadas… E tem uma ideia: vai fazer arroz-doce, será uma surpresa para eles e um ótimo lanche.

E quando os filhos entram em casa para lanchar, depois de arrumada a lenha, sentem o aroma da canela e olham os pratos de arroz-doce ainda quentinho, surpreendidos mas contentes.

E ela sente que jamais os perderá.

 

Felipa Monteverde

15
Jun12

A tia Dores

por Felipa Monteverde

A minha tia Dores é daquelas pessoas chatas, mas tão chatas que só em nos lembrarmos delas já ficamos chateados.

Quer saber tudo acerca de tudo, e o pior é que não guarda segredo de nada e conta tudo, mas tudo! o que sabe e mais ainda – tem o condão de aumentar sempre mais um pontozinho a tudo o que conta.

É, portanto, daquelas pessoas que temos forçosamente de evitar, ou a nossa vida será falada e sabida por toda a gente, não só sabida mas exageradamente comentada.

Irmã da minha mãe, a tia Dores assumiu um pouco o papel desta quando ela faleceu (embora isso tenha sido há 6 anos e eu já ser bem crescidinha) e volta e meia lá me telefona, a querer saber tudo de mim, do marido, dos filhos, dos amigos dos filhos, do gato, do cão, (bem, eu não tenho gato nem cão, mas se tivesse com certeza a tia Dores quereria saber tudo sobre eles).

De tudo o que há cá em casa quer saber: com que é que limpo a sanita, ela comprou um produto no supermercado que não resultou muito bem, cheira mal que se farta e não limpa nada, lá em França é que havia produtos bons, era um cheirinho que só visto (ou sentido, neste caso).

É uma chata, a tia Dores, oh como é chata! E como me chateia com os seus telefonemas, sempre a perguntar coisas a que eu não quero responder, sempre a falar, a falar…

As filhas (que não estão para a aturar) dizem sempre que sim a tudo e vão à vidinha delas, muito descansadas e tranquilas, e a tia Dores sai à rua e desabafa com a primeira vizinha que lhe aparece à frente, falando mal das filhas que são umas mal-agradecidas e não fazem caso dela e a deixam só, e ela sempre preocupada com elas que até se sente mal, no outro dia esteve quase a telefonar para o 112 mas depois lembrou-se de que agora tem de se pagar o transporte de ambulância para o hospital e desistiu, fez um chazinho com umas ervas que uma prima lhe tinha dado, muito boas para acalmar, e ficou melhorzinha graças a Deus.

O marido, o tio Xavier, nada diz. Contenta-se em ir ao café, gozar a reforma a jogar às cartas com outros na mesma situação – menos o Aníbal, que ainda está no ativo e joga de vez em quando mas é apenas quando o turno no trabalho lhe deixa as tardes livres, o que acontece mais ou menos de duas em duas semanas, dependendo se não o troca com alguém que precise de fazer umas obras em casa ou outras coisas quaisquer, e o Aníbal como é muito prestável aceita as trocas com toda a gente.

A mulher diz que os colegas abusam dele por ser tão molenga mas ele nem ouve, diz que não está para se chatear por tão pouco, que a ele não lhe custa nada trocar turnos e assim vai fazendo o jeito a quem se quer ajeitar, e que a mulher não tem nada com isso pois quem trabalha é ele e é ele, portanto, quem sabe se pode ou não pode fazer esses favores aos colegas. Cá para mim, o Aníbal quer é estar afastado da mulher o mais possível…

Pois o tio Xavier nada diz, dos achaques da minha tia ou da indiferença das filhas, quer é gozar a companhia dos netos quando o vêm visitar, e a mulher e as filhas que se entendam na cozinha, onde estão sempre a tomar café e a falar mal dos homens (é o que ele acha que as mulheres fazem quando se juntam).

Lá nas estranjas por onde andou e trabalhou já teve preocupações que chegassem, agora cada um que se entenda que “eles são brancos não são pretos” (este provérbio se calhar não soa muito bem nos tempos que correm, mas o meu tio gosta muito de dizer as coisas que aprendeu antigamente, como se pretendesse preservar a memória desses tempos e diz o que lhe apetece sem ligar a preconceitos ou racismos, até porque se há pessoa que não é racista no mundo é ele, que trabalhou tantos anos com pretos lá na França e sabe muito bem que eles até “são pessoas iguais a nós e melhores do que muitos brancos que conheço”).

Pois, enfim, como ia dizendo, a minha tia é daquelas pessoas chatas, muitíssimo chatas, que queremos sempre ver pelas costas e a quem fingimos que não vemos quando as encontramos na rua, tentando passar invisivelmente para o outro lado do passeio.

É assim, a minha tia Dores.

Mas hoje, hoje é um dia diferente.

E porque é um dia diferente, fiquei contente com o telefonema da tia Dores, ao contrário do que me acontece em todas as outras vezes em que ela me telefona e eu vou suspirando em silêncio, ansiando que ela se canse de falar e desligue, finalmente, contente da vida por ter desenferrujado a língua (que duvido que tenha um pinguinho sequer de ferrugem, dado o uso que ela lhe dá todos os dias).

Pois, mas hoje agradeci, e quase beijei a tia Dores (se isso fosse possível por telefone). Como fiquei contente com o telefonema dela!

É que hoje é mesmo um dia especial, tão especial que eu até faço anos… e ninguém se lembrou disso cá em casa.

Nem marido, nem filhos, ninguém… andam ocupados cada um com os seus assuntos, as namoradas, o futebol, os exames, e os mais etc. que cada um tem, e nenhum deles se lembrou do meu aniversário…

Só se lembrou a tia Dores.

E eu nem sei se ralho, se amuo, se me zango… ou se saio e vou comprar uma prenda para mim, que se calhar até é o melhor a fazer.

E cada um que se amanhe com o jantar, eu vou visitar a tia Dores e tomar um cafezinho com ela, que já me convidou tantas vezes e eu tenho declinado sempre esses convites… mas hoje é mesmo um dia especial!

 

Felipa Monteverde


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