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18
Jul12

As laranjas do velho avarento

por Felipa Monteverde
Era a Mariazinha a moçoila mais bonita do lugar. Muito prendada, sabia fazer de tudo, todos os trabalhos em que punha as mãos saíam perfeitos. Aos doze anos já era ela quem cozia a fornada para a semana toda, e todas as broas ficavam bem cozidas e saborosas.
Arrumava a casa melhor do que sua mãe. Quando ia lavar roupa ao tanque da fonte, todas as mulheres gostavam de conversar com ela e todas sabiam que a roupa que ela lavava ficava sempre mais bem lavada e perfumada do que a delas. Era muito prendada, a Mariazinha.
Quando se fez moça, todos os rapazes a cobiçavam. Todos queriam ter a graça de uma palavra sua, de um sorriso. E ela com todos falava, a todos sorria, mas não namorava nenhum. Todos queriam entregar-lhe o coração, ela nenhum aceitava.
Mas um dia a Mariazinha apaixonou-se. E como o seu coração era puro e bom assim era o amor que sentia, e o enamorado correspondeu em dobro. Uma manhã de domingo, o abade ao fim da missa leu os banhos da Mariazinha e do Inácio Aires. Ia, pois, casar, a moça mais pretendida da terra.
Todos os rapazes se entristeceram; e as outras moças roeram-se de inveja, pois Inácio era o melhor partido do lugar.
“Estão bem um para o outro”, diziam as velhas. E os velhotes pensavam de si para si: “ah, se fosse no meu tempo, eram comigo os banhos dela…”
Enfim, pois, um dia a Mariazinha casou.
Dali a algum tempo a graça do amor invadiu o seu corpo, no seu ventre se gerou a vida. O rosto de Mariazinha parecia cheio de luz, luz que se refletia nos seus belos olhos. Oh, que alegria que sentia! E que vontade de conhecer o seu filhinho, fruto do seu amor por Inácio.
Mariazinha estava muito feliz.
Inácio, tamanho era o seu amor por ela, enlevava-se nela, revia-se nos seus olhos cerúleos e com carinho afagava o seu ventre já crescido. Ternamente a olhava, e o volume do corpo dela dava-lhe um misto de ternura e de orgulho. A mulher ia dar-lhe um filho, uma criança que selaria para sempre o amor entre os dois. Inácio sentia-se o mais bem-aventurado homem à face da Terra.
Mariazinha ia ganhando ventre, já todos sabiam da novidade. E davam-lhe os parabéns, e desejavam-lhe boa sorte e uma hora pequena.
Um dia, Mariazinha vinha da fonte, com a cesta da roupa lavada. Estava muito cansada, parou e poisou a cesta. A barriga já pesava, fazia-lhe doer as costas.
Depois de descansar um pouquinho voltou a pegar na cesta; e foi então que reparou nas belas laranjas que estavam numa laranjeira, num quintal em frente. Pareciam tão boas, tão sumarentas! E que sede ela tinha, ai, como lhe apetecia uma laranja daquelas!
Mas a laranjeira estava no quintal de um velho conhecido pela sua avareza, com certeza ele não lhe daria uma. Ou daria? Mas era tão avarento, toda a gente o sabia… Mariazinha achou melhor tirar dali o sentido, afinal, aquela não era a única laranjeira da região.
E foi para casa. Ah, mas como ela pensava naquelas belas laranjas, que boas pareciam! Ai, ela queria tanto uma laranja daquelas, uma, uma só bastaria para lhe matar esse desejo que sentia. Tentava esquecê-las, pensar noutra coisa, mas não conseguia…
À noite, Inácio estranhou o silêncio dela. Que se passara, por que estava ela tão triste? Por que estavam os seus olhos tão ausentes, por que não sorriam os seus lábios? Estavam tão tristes os olhos da Mariazinha…
Depois de muito insistir, Inácio ficou a saber do desejo dela pelas laranjas do velho. Mas então a Mariazinha queria laranjas? Laranjas ele lhe daria, não uma mas mil, todas as que quisesse. Ia já comprá-las, agorinha mesmo!
Mas não, ai não é assim, Mariazinha não quer laranjas que não sejam da laranjeira do velho. Só essas são boas, só essas lhe apetecem, tão sumarentas! Bastou olhar para elas, ali na laranjeira como a sorrir-lhe, para ficar a saber que aquelas são as melhores laranjas do mundo.
E não, não adianta Inácio ir comprar-lhe laranjas, ela só quer das da laranjeira do velho. Dessas e só dessas. E nem fome tinha, não comia nada, só tinha na ideia as laranjas.
E como em laranjas pensava, era tanta a sede que tinha que já os lábios lhe secavam, e ela não bebia nada, só queria uma laranja. Ai, como ela desejava uma laranja da laranjeira do velho!
Inácio já ouvira falar em desejos de mulheres grávidas, desejos tão fortes que tinham de ser satisfeitos ou algo de mau aconteceria à criança. Não sabia se isso era verdade ou não, mas vendo o estado de Mariazinha, aqueles olhos de céu triste, aqueles lábios onde o sorriso fenecera, Inácio levantou-se e disse que ia pedir uma laranja ao velho.
Os olhos de Mariazinha iluminaram-se, esperançosos.
Lá fora estava muito escuro, a noite ia avançando.
Inácio foi a casa do velhote e bateu à porta. Quando ele abriu, pediu-lhe se lhe fazia o obséquio de lhe arranjar uma laranja para a sua mulher, que se encontrava grávida e manifestara desejos por uma das laranjas da sua laranjeira.
O velhote olhou para Inácio com cara de poucos amigos e respondeu: “nem uma, nem duas!”. E fechou-lhe a porta na cara.
E agora? Como iria Inácio dizer à Mariazinha que não lhe levava uma laranja das do velho, como poderia olhar nos seus olhos e dizer-lhe que não tinha conseguido uma laranja, uma só, para lhe satisfazer o desejo que sentia?
Ah, que amargura, quanta amargura no coração de Inácio… Por que não tinha ele uma laranjeira no quintal, para a Mariazinha comer quantas laranjas quisesse?
E se fosse à mercearia comprar laranjas? A hora era tardia, já devia ter fechado… e se calhar a Mariazinha reconheceria o sabor; quem sabe se a gravidez lhe tinha dado um sentido excecional para saber as coisas? Diria que ele não gostava dela, que a enganara…
Enquanto andava e assim pensava, encontrou o Manel Abreu, que lhe perguntou o motivo de ele estar assim tão sério e pensativo, por que era tanta preocupação. Inácio contou-lhe tudo.
“Ah, é só por isso? Pois sossega, que a Mariazinha há de ter a sua laranja. Vamos procurar o Bonifácio.”
Foram a casa do Bonifácio e contaram-lhe o que se passava. Ele pegou logo num saco e disse: “vamos?” E foram.
Na escuridão da noite, os três subiram o muro do quintal do velho.
Felizmente, ele era tão avarento que nem tinha cão, para não ter de o alimentar. O Manel Abreu e o Bonifácio subiram à laranjeira, levando o saco. Inácio achava que não era preciso isso, ele só queria uma laranja e chegava-lhe perfeitamente do chão, mas os outros dois não tinham a mesma opinião, achavam que a Mariazinha merecia muito mais do que apenas uma laranja. Além disso, o velho estava mesmo a precisar de uma lição; e tiraram todas as laranjas que havia na laranjeira, as grandes e as pequenas, as maduras e as verdes. Encheram o saco.
Quando Inácio chegou a casa Mariazinha viu o saco com as laranjas e não compreendeu… e ele explicou-lhe o que acontecera. E nos belos olhos dela voltaram a brilhar estrelas, o rosto iluminou-se num incandescente sorriso. Mariazinha não sabia se chorava ou ria, aquelas laranjas brilhavam-lhe nos olhos, refletiam o grande amor de Inácio por ela.
Apaziguou-se a sede dela, não mais os lábios lhe secaram. Ela tinha laranjas, as almejadas laranjas, todas as laranjas da laranjeira do velho!
Vá-se lá a saber que mistérios envolvem a gravidez das mulheres: Mariazinha comeu todas as laranjas, as pequenas e as grandes, as verdes e as maduras; comeu-as todas.
Quanto ao velho avarento, nunca soube o caminho que as suas belas laranjas levaram...

Felipa Monteverde


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