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As manhãs servem para acordar.
Isso já se sabe, dahhhh! Mas servem também
para descobrirmos sons.
Tentem acordar mais cedo uma manhã e
deixem-se ficar, a ouvir os sons que ela vos traz:
alguém que já se levantou e faz a higiene pessoal na
casa de banho, alguém que ainda ressona,
o sinal de mensagem recebida no telemóvel,
o "plim" de uma "conversa" no Facebook que alguém já ligou,
um carro na rua, o autocarro que arranca da paragem,
a vizinha madrugadeira que lança o seu vozeirão
aos gatos que alimenta às dúzias...
As manhãs servem para refletirmos
no que vamos fazer durante o dia: onde ou com quem
vamos almoçar, o que vai ser o jantar,
a passagem pela costureira no fim do trabalho,
a reunião na escola dos filhos (ou na nossa)...
Há muitas coisas que deixamos escapar
se não nos deixarmos cativar pelos sons
e pelo silêncio também, das manhãs.
Felipa Monteverde
O trabalho não era fácil mas Rosa estava habituada. Todos os dias se levantava às sete horas, tratava do almoço dos animais, a erva para a vaca e os coelhos, o milho para as galinhas. Não tinha ovelhas, não gostava de animais que precisavam que os levassem ao pasto; os que tinha comiam nos eidos ou nas capoeiras, só a vaca saía de vez em quando mas raras vezes Rosa tinha paciência para ir com ela, era o filho mais velho que a levava a pastar.
A sua vida era assim, rotineiramente igual em todos os sentidos. Até naquele sentimento que lhe afogava o peito em lágrimas que ela escondia ou disfarçava como podia, não queria que ninguém soubesse da sua mágoa.
Ele é que a tinha posto assim, não tinha dúvidas acerca disso. Ele é que era o culpado de a sua vida ser tão amarga. Não falava pelo trabalho, o muito trabalho de todos os dias. Não era isso que a incomodava, até gostava de tratar da casa, do quintal e dos animais. Dos filhos ainda mais.
Não gostava era daquela sensação de perda que a assaltava todas as noites, quando ele tardava em chegar. Como rotina já ela sabia que era certo que ele fosse ao café, todos os dias no fim do jantar, para um copo com os amigos ou um jogo de cartas até às tantas da madrugada. Mas quando as madrugadas se estenderam a noites inteiras ela começou a achar que havia algo de errado.
E descobriu que havia, sim, havia mesmo algo de errado nisso. Mas jamais se atreveu a confrontá-lo, a inquirir sobre as demoras, a reclamar das noites solitárias. Habituou-se, tornara-se rotina na sua vida aquela solidão. Àquela dor no peito é que era difícil habituar-se, por isso ia definhando a olhos vistos.
Só ele é que não via nada e continuava na sua rotina.
Felipa Monteverde