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De vez em quando dá-lhe para a nostalgia, recorda coisas que se passaram há tanto tempo que parece ter sido antes de o mundo nascer.
Hoje lembrou-se da Maria B., antiga colega de escola. Era uma menina filha de gente com posses, via-se nitidamente que não passava fome. Mas ela passava, muita. E de vez em quando perguntava à Maria se lá em casa se cozia a fornada. E se lhe poderia levar nesse dia para a escola um bocadinho de broa ainda quente, para ela comer... e a outra calava-se.
Lembra-se de lhe perguntar também se tinham árvores de fruto no quintal, e de a outra responder que sim, que tinha fruta variada sempre lá em casa. E ela pedia-lhe que lhe levasse uma pecinha de fruta: uma ameixa, uma laranja, qualquer fruta... e a outra calava-se. E nunca lhe levou nem pão nem fruta para a escola.
Eram colegas de carteira. Ela era das mais inteligentes da classe, a Maria B. era uma burra, não sabia nada.
Um dia estavam a fazer uma redação (anos mais tarde mudaram-lhe o nome para composição) sobre D. Afonso Henriques. E a Maria perguntou-lhe que título tivera o rei. E ela (tem remorsos, mas não muitos) respondeu: Vaca taurina. E foi o que a outra escreveu, burra que era...
Maria B. foi chamada è secretária pela professora e apanhou. E ela (com remorsos, mas não muitos) ficou contente, pois dessa maneira foi a outra castigada por nunca lhe ter matado a fome (e coziam a fornada... e tinham fruta... e ela sempre com o estômago colado às costas, esfomeada que andava...).
Felipa Monteverde
A beleza das cores de outono passava-lhe despercebida, não tinha olhos para ver. Olhava e parecia cega, nada via.
Nada do que esperava encontrar por ali estava onde deveria estar, e ela nada via para além do que desejava ver. O desejo não conseguia transformar a ausência em presença, em proximidade e calor.
Por isso andava só. Ia sempre sozinha onde quer que fosse.
Ninguém para lhe fazer companhia. Só o silêncio e a solidão.
Longe estava quem um dia a fez sonhar.
Longe também os sonhos, amarelecidos na gaveta das lembranças.
Nada do que fizesse lhe restituiria aquilo que mais desejava: o regresso ao passado.
O regresso a uma tarde de verão, em que as gaivotas e a areia se tornaram a única lembrança que guardava do adeus.
Adeus ao amor. Ao amor que sentira e guardara para sempre no coração.
Nessa tarde, a que desejava regressar, morreu o amor, morto por uma palavra que não tinha o direito de ter sido proferida.
Mas foi-o. E matou, qual espada arremessada ao peito amado, o amor que lá havia.
Mil vezes se arrependeu de a ter dito. Mil vezes recordou essa tarde, mil lágrimas chorou, mas arrependimento não mata e ela não morreu. A vida que a sustenta é aparente, na sepultura que aguarda o seu corpo já repousa a sua alma.
Tem apenas a guiá-la o desejo de regressar a esse dia, aos momentos antes de tudo acontecer. E matar a palavra que a assassinou.
Felipa Monteverde