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Os pés estavam doridos, afligiam-no os joanetes e as unhas encravadas. Tirou as botas, o guarda-chuva pousado ao lado. Sentou-se e tirou também as meias. O cansaço diluiu-se na aragem, o sono ameaçava chegar mais cedo.
Olhou e não viu banco de jardim. Mais uma noite desconfortável ao relento. Roubaram-lhe o cobertor há três noites, tem de procurar a carrinha da Assistência novamente.
Não se habitua a isto. Não sabe ser mendigo, não tem jeito para pedinchar. Nem para roubar. Por isso lhe dói tanto o estômago, nem sempre a fome se deixa enganar.
Era assim que lhe diziam que seria. Não era assim que ele pretendera que fosse. O casamento falhado, o emprego perdido, o filho que não conseguira ter. Avisaram-no: aquela mulher não prestava. E não prestava mesmo, ele é que tarde o descobrira.
Arruinara-o. Abandonara-o depois. Os credores é que não o abandonaram, levaram o que restara e o que não tinha. Por isso vivia agora na rua. Escorraçado como um cão, miserável entre os miseráveis.
Mesmo assim, perguntava-se muitas vezes por que não se suicidava. Seria fácil, havia por ali um rio perto. Quem se importaria com a morte de ninguém?
Mas o sol que todas as manhãs o despertava prometia-lhe calor que o aqueceria, luz que lhe guiaria os dias, iluminando-lhe o caminho. Caminho que percorria sem saber aonde o levaria, quando terminaria a caminhada.
Comia laranjas, havia muitas laranjeiras à beira dos caminhos. Matavam-lhe a fome, adoeciam-lhe o estômago. Mas o pior de tudo eram os pés. Os joanetes, as botas apertadas, as unhas encravadas…
O caminho não era fácil de percorrer, nem a esperança fácil de alcançar. Mas ele levava esse desejo consigo, juntinho ao coração. Um dia, sabia bem, ela deixar-se-ia alcançar.
Felipa Monteverde
Tem cerca de 60 anos, não tem casa nem família, vive com uma família de acolhimento.
Somos do mesmo movimento católico, numa destas noites foi o nosso jantar de Natal. No final do jantar, depois da troca de prendas, ficamos a conversar. O tema era banal: comida. O que fazia bem, o que lhe fazia mal, o que não podia comer. Tem carência de ferro, tem de comer carne mas desabituou-se de a comer numa Quaresma em que se absteve todos os quarenta dias e passa bem sem ela. Gosta de carne de porco mas dizem que faz mal... e eu então digo: faz mal agora, mas olhe que antigamente não fazia mal a ninguém, comia-se apenas duas ou três vezes no ano... E ela diz-me que só comeu carne pela primeira vez aos dezasseis anos. E então começa o desabafo.
Única filha de uma mãe solteira, que pouco caso fazia dela. A mãe trabalhava em quintas vizinhas e comia por lá, quando chegava a casa não tinha fome e não cozinhava. Acendia o lume, na lareira, para aquecer água para lavar os pés e a criança aproveitava as brasas para aquecer laranjas, que comia, antes de se deitar.
De manhã ia para a escola até à uma da tarde, chegava a casa e a mãe tinha-lhe deixado num pequeno pote algumas batatas cozidas e couves. Não lhas deixava na cozinha mas lá fora, no quinteiro, não lhe deixava a chave de casa. Ela comia essa comida e depois pegava nas ovelhas e ia com elas para o monte. Quando a noite chegava regressava e guardava os animais nos currais. Era então que a mãe chegava do trabalho nas quintas, já sem fome, e não se importava com ela.
Tivera uma tia que era amiga dela, cozia a fornada e dava-lhe um bolo de porta aberta. Era uma espécie de broa mais baixa e que se cozia com a porta do forno aberta, para não queimar. Nos dias em que a tia cozia era uma alegria para ela.
A mãe criava ovelhas, galinhas e coelhos mas nunca matava nenhum animal para comerem, era tudo para vender, até os ovos.
Não tinham laranjeiras mas os vizinhos tinham e davam-lhes as que caíam ao chão e que ainda estavam boas. Elas apanhavam-nas e separavam-nas em dois grupos: de um lado as que ainda estavam boas para comer, de outro lado as que já estavam estragadas. A essas a mãe partia aos bocados e juntava farinha, para dar às ovelhas. Ela matou a fome muitas vezes apenas com laranjas.
Aos dezasseis anos foi servir e ficou com os patrões muitos anos.
Quando a mãe faleceu ela não foi a sua herdeira mas uma prima, que ficou com a casa. Essa prima dizia que herdara a casa de uma tia que não tinha filhos…
Levou o caso a tribunal, com a ajuda dos patrões. Não teve a casa de volta mas recebeu dois mil e tal contos. Pôs os dois mil no banco e o que recebeu acima foi para pagar aos advogados e ainda sobrou algum.
Quando esteve na primeira família de acolhimento, pela Segurança Social, a família que a acolheu foi-lhe ficando com o pouco dinheiro que ela trouxera consigo. Ela escondia-o no colchão mas davam-lhe com ele e tiravam sempre algum. Outras vezes pediam emprestado e não devolviam. Até que descobriram os dois mil contos no banco. Trataram logo de mudar de carro e pediram-lhe esse dinheiro emprestado. E ela emprestou.
Nunca lho devolveram e ainda a puseram fora de casa, pelas onze horas de uma noite de há seis anos.
Ela foi bater à porta de uma família que tomava conta de alguns idosos, também pela Segurança Social, e ficou a morar lá.
Está reformada por invalidez, tem uma deficiência motora; penso que deve ter tido poliomielite em criança. Do dinheiro que recebe fica com 60 euros, o resto vai para a família que a acolheu, a quem a Segurança Social também paga. Desse dinheiro compra os medicamentos e outras coisas de que precise, como fruta ou uma garrafinha de Vinho do Porto de vez em quando. E trata dos dentes (da placa), muda as lentes dos óculos.
Toma alguns medicamentos que vêm em embalagens de 60 comprimidos, menos um, para a proteção do estômago (tem gastrite, teve uma úlcera). Esse vem em embalagens de 56, então ela está uns dias sem tomar, para lhe durarem os dois meses como os outros, mas sente-se mal nos dias em que não os toma…
E quando recebe dobrado - perguntei-lhe - como é? Fica com o dobro, ou seja, 120 euros… o resto vai para a família de acolhimento.
Eu ouvia o que me dizia e pensava em escrevê-lo. E agora que escrevi, tenho muita pena em saber que isto não é um texto ficcionado.
Felipa Monteverde